Mais
do que
Casas

1. A Paz

Portugal, como a Europa, avança velozmente para uma sociedade de atomização cultural e social, não só nos centros urbanos de maior dimensão, mas em todo o território.

As transformações sociais e identitárias ocorrem a um ritmo cada vez mais acelerado, com impacto em diversas formas de habitar, de entender o trabalho, a educação e o lazer.

A diversidade é a norma, que se reflete na necessidade de adaptação contínua do indivíduo, para a sua sobrevivência, face à relevância destas transformações.

Urge a cidade transformar-se num espaço intercultural de modo a permitir que cidadãos de diferentes origens e identidades se misturem, interajam e comuniquem. A cidade intercultural recusa a atomização, a guetização e a racialização, e molda as suas políticas de planeamento, da habitação aos espaços públicos, na garantia dos direitos de todos e da cidade para todos.

Mas é essa a cidade que hoje estamos a construir?

2. As Casas

O direito à habitação está consagrado na constituição portuguesa de 1976 (art.º 65), assim como na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948 (art.º 25). O esforço do Estado na habitação, que remonta a 1918, foi sempre insuficiente. Basta reter que somente 2% do total do atual parque habitacional é de iniciativa pública.

Portugal vive hoje a grande crise da habitação deste século.

Uma crise que adquire diferentes facetas, estende-se a vastas e distintas camadas da população e a diferentes problemas territoriais. Por um lado, advém da incapacidade da população suportar os custos inflacionados nos centros das cidades, pressionados pelo turismo, por fundos de investimento, pela diferença do custo de vida entre países e pela nomadização do trabalho. Por outro lado, advém da incapacidade dos territórios de baixa densidade fixarem população, sendo pouco atrativos para o investimento privado. E, por fim, reflete diretamente a falta de políticas públicas de habitação de sucesso que incorporem quer um equilíbrio social e de integração, quer uma boa qualidade da arquitetura e da construção, de forma acessível.

Está em marcha o maior programa estatal de habitação, na sequência da aprovação, em 2019, da Lei de Bases da Habitação e do PRR. Existem múltiplos programas para situações específicas – apoio a jovens, a pessoas com rendimentos abaixo do nível da pobreza, a imigrantes, a refugiados, a idosos, etc. – mas estão setorizados ou respondem a situações de urgência, sem articulação ou comunicação entre si, não promovendo a cidade para todos. Raramente os seus programas são feitos com referência às populações das comunidades em que se inserem, e à caracterização das suas necessidades específicas.

Será que estas ações transportam uma reflexão em torno do habitar e dos tipos de habitar? Consideram as configurações e reconfigurações da família ou grupos familiares, o habitar intergeracional, o envelhecer em casa, os hábitos de culturas de diferentes geografias e religiões, a presença de animais domésticos, entre outras especificidades?

Se a família está em transformação, é dinâmica, é fluida, é elástica, é pendular, é unipessoal, e a casa é o espaço de partilha de várias pessoas, como responder ao direito de habitar?

Será que as intervenções de pequena escala dentro de tecidos urbanos que promovem a requalificação urbana e a coesão social têm lugar nos modelos de financiamento e gestão dos programas públicos de forma abrangente e eficaz?

Será que as opções de reabilitação, em cumprimento efetivo/primário de objetivos de sustentabilidade por via de redução de resíduos e emissões de CO2, e proporcionando a requalificação das cidades e do enorme parque habitacional vago, não deveriam ser o modelo predominante?

Em que medida está também o espaço público a ser considerado? Estão os vazios a ser objeto de reflexão sobre o seu programa de uso, de gestão e de apropriação? Está o seu potencial de encontro, de participação coletiva e de continuidade com a cidade a ser equacionado para além do preenchimento vegetal e mineral?

Há 50 anos o programa SAAL trouxe à superfície, com a participação dos futuros habitantes, um movimento de direito à cidade e à habitação, que assim reivindicaram o seu lugar na cidade que lhe estava vedado pela pobreza extrema a que estavam votados. A investigação tipológica e urbana resultante, assim como o seu processo e modelos financeiros, continuam a constituir uma referência disciplinar e internacional. Tragicamente, e de acordo com os programas de habitação hoje no terreno, parece nunca ter existido.

Atualmente, o objetivo do Estado Português é a construção de 25.000 fogos nos próximos dois anos. Os resultados dos concursos de projeto para a construção de habitação são evidência das políticas atuais, dominados pela quantificação de custos, áreas, prazos, regulamentação, normativas obsoletas, e incongruentes noções de acessibilidades e de eficiência energética, distantes da discussão do desenho urbano, das populações e das suas diferentes características.

Na sua maioria, como proposta de modelo de cidade, são absolutamente similares, sem lugar à diversidade, tornando-se até difícil de distinguir do ponto de vista arquitetónico. O programa base parece impedir o avanço para além de uma cidade genérica, asséptica e universal, do ponto de vista da encomenda, em vez de uma resposta específica local e de interligação com o contexto onde se integra, indiferente às necessidades sociais e interculturais. Que elementos estão a ser dados aos projetistas para promoverem modelos de cidade inclusiva?

Nas últimas décadas, o Estado optou por se retirar, ficando as instituições públicas sem meios de reflexão para um trabalho contínuo sobre a habitação. Resta o sentido de urgência, perante a crise que agora emerge à superfície, para nortear as ações públicas de hoje.

3. Mais do que Casas | Abril 2074

A complexidade social vigente sugere o fortalecimento de uma cidadania global marcada pela capacidade de auto-organização dos cidadãos numa multiplicidade de formas de participação na defesa dos seus direitos e nas decisões que lhes dizem diretamente respeito.

Os 50 anos passados sobre o 25 de abril devem ser celebrados com uma reflexão sobre aqueles temas que então e hoje permanecem como um desafio, uma necessidade por cumprir. Uma coincidência infeliz, 50 anos depois, o acesso à habitação voltou a ser um dos problemas mais urgentes a resolver.

As Escolas de Arquitetura, de Arquitetura Paisagista e de Belas Artes têm a capacidade e o dever de contribuir para este debate, com projetos de investigação e intervenção prática, adequada ao atual contexto português, e ao momento presente, com o entusiasmo e o envolvimento crítico, criativo e livre dos estudantes e professores.

O desafio que aqui se propõe é a contribuição das escolas com propostas para uma sociedade aberta e intercultural de hoje.

Teresa Novais e Luís Tavares Pereira

Fevereiro 2023